O apagão no Amapá: política energética e neoliberalismo



A subestação de Macapá, que transmite energia para quase todos os municípios do estado, pegou fogo após ser atingida por uma tempestade de raios. Normal. Afinal quase não chove em Macapá, né? Nessa subestação havia três transformadores: um em funcionamento e dois de reserva. O que funcionava foi todo queimado, um outro foi bastante danificado pelo fogo. E o outro reserva? Estava estragado desde o final de 2019. Ou seja, negligência total de quem o administrava. Quase um ano depois de estragado e até hoje nada de consertá-lo? Comprar um novo? E se caísse um raio na subestação? Pois é. Caiu. “Ah, essa empresa é pública, estatal, só pode”. Não é não. A subestação é todinha ela administrada por uma empresa privada, aliás, estrangeira, a espanhola ISOLUX CORSÁN. 

Vencedora de um “leilão” realizado em 2008, a Isolux arrematou dois dos três lotes de uma concessão (com prazo de 30 anos) para construção, operação e manutenção da Interligação Tucuruí-Macapá-Manaus. Ou seja, é a mesma empresa que construiu e que cuida do famoso Linhão de Tucuruí (famoso por problemas, a galera do Amapá sabe bem), ligando o município de Almerín (no Pará) ao território do lado norte do Rio Amazonas, onde estão as subestações em Oriximiná (PA), Laranjal do Jari (AP) e, claro, Macapá (AP). O Linhão de Tucuruí integrou o Amapá (a partir de 2015) e outras regiões nortistas ao SIN – Sistema Interligado Nacional de produção e transmissão de energia elétrica. Segundo os governantes na época, isso era muito importante. Por quê? Discurso oficial: sustentabilidade, energia limpa, energia renovável, abandonando a necessidade das usinas termoelétricas que eram utilizadas. Na prática: atrair empresas interessadas em fazer barragens, construir hidrelétricas nos rios do Amapá e vender energia gerada ali para outras regiões através do Linhão.

O problema do Amapá não é, portanto, conexão com outras regiões, nem produção de energia. Existem quatro usinas no estado. Sozinha a Usina Hidrelétrica de Ferreira Gomes daria para abastecer quase o estado inteiro, 750 mil pessoas. Ao lado dela, no Rio Araguari, há mais duas: a da Cachoeira Caldeirão e antiga Usina do Paredão (Coaracy Nunes). Somente a última é empresa pública, as demais são de capital privado. A EDP, proprietária da Usina de Cachoeira Caldeirão, também é dona da Hidrelétrica de Santo Antônio do Jari, em Laranjal do Jari, no sul do estado.

A maior parte da energia produzida nessas usinas privadas é vendida para outros lugares do país, através do Sistema Integrado Nacional. Sim, desde 2015 o Amapá produz energia elétrica para outras partes do país. E é um negócio que dá bilhão! Para terem uma ideia, a ALUPAR, dona da usina de Ferreira Gomes, estimou seu lucro em 2019 em quase 1 bilhão (890 milhões) de reais.

Agora vem o plot twist, a reviravolta. Sabe quem resolveu o problema da falta de energia? A Eletronorte, uma estatal que controla a usina do Paredão, segmento da Eletrobrás, que o atual governo federal está fazendo de tudo para privatizar. Ou seja, mais uma vez os funcionários públicos aparecem para limpar as cagadas da iniciativa privada. Isso porque a Isolux não tinha corpo técnico para solucionar o problema a curto tempo. Redução de custos, sacomé. E se não existisse a Eletronorte para pelo menos amenizar a situação?

O (o)caso da energia no Amapá e a solução parcial do problema ilustra muito bem como a ideologia neoliberal que relaciona diretamente privatização e eficiência não resiste a um sopro de realidade.

Qual é o discurso neoliberal? Que entregar de bandeja (e o termo é esse mesmo) serviços e instituições públicas para empresas privadas melhora a administração e a prestação de serviços à sociedade. Isso porque, em tese, geraria uma concorrência entre as empresas, que abaixariam os preços e/ou melhorariam a qualidade das mercadorias ou serviços para disputar os clientes. Livre-mercado, lei da oferta e da procura, aquela coisa toda que funciona lindamente na teoria, mas que falta combinar com os fatos.

De todo modo, se essa concepção tem relativa validade para certas mercadorias, como objetos e etc. (valeria uma discussão a parte), ela nada vale para “setores estratégicos” como o de energia elétrica. Por quê? A crítica dos liberais, desde que nasceram no século 18, é contra os monopólios. Monopólios típicos do capitalismo mercantil, do próprio Estado sobre a exploração de regiões coloniais, produção ou comercialização de produtos. Ou que o Estado concedia a uma empresa específica a troco centralizar a captação de impostos. Acontece que, no caso da energia e de outros serviços, é mais ou menos isso que atualmente o Estado faz numa privatização. Ele concede a uma empresa privada. Claro, muitas vezes depois de o Estado gastar rios de dinheiro público construindo obras e infraestrutura. Quanto vocês acham que custa uma Usina Hidrelétrica?

A empresa que ganha a concessão não tem concorrente. Não precisa ficar brigando por cliente, abaixando preço. Ou você compra energia dela ou... fica sem. Como toda empresa privada, a prioridade dela é o lucro e não o atendimento das necessidades da sociedade. Interessada em aumentar o lucro e sem concorrência, para diminuir os custos, ela pode reduzir funcionários ou salários ou contratar pessoas sem qualificação técnica (já que o salário é baixo). Mais do que isso, quanto menos ela investir em estruturas materiais novas, menos reformas fizer, menos tiver investido em recursos e equipamentos reservas para eventuais crises, MAIS ela vai lucrar, MAIS vai atingir seu objetivo.

Ao longo da história dos séculos 20 e 21, o Estado tem aparecido em contextos de crise para salvar empresas privadas, através de empréstimos, abatimentos fiscais, perdão de dívidas. A política do neoliberalismo depende obviamente atuação do Estado para reanimar a economia de mercado e reverter a distribuição de riquezas para as classes altas. Em uma das modalidades: verbas públicas destinadas para beneficiar grandes corporações que, por sua vez, colocam o lucro acima de tudo. Por isso o termo “Estado mínimo” é nada mais do que uma artimanha ideológica dos neoliberais, que os fatos contradizem.

Em relação à situação amapaense, cabe aos órgãos reguladores verificar as falhas da empresa Isolux, a negligência, os erros do projeto, enfim. E aí, será que ela vai perder a concessão? Duvido! Depois que outra empresa privada, a Samarco, oriunda da privatização da Vale, destruiu o Rio Doce e os proprietários saíram ilesos, sabemos bem como se dá essa relação.

Bibliografia consultada:

CORRÊA, K. M. A. A formação do complexo hidrelétrico no Rio Araguari: impactos no ordenamento territorial de Ferreira Gomes, Amapá. 2018. 128 f. Dissertação (mestrado) – Fundação Universidade Federal do Amapá, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional, Macapá, 2018.

DE DOILE, G. N. ; NASCIMENTO, R. L. Linhão de Tucuruí – 1800km de integração regional. T&C Amazônia, ano VIII, n. 18, I semestre, 2010. Disponível em:

http://www.eniopadilha.com.br/documentos/TucuruiManaus.pdf

HARVEY, D. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

SEVERINO, W. M. S. Impactos socioeconômicos e ambientais em populações diretamente atingidas pelo empreendimento hidrelétrico Cachoeira Caldeirão. 2016. 96 f. Dissertação (mestrado) – Fundação Universidade Federal do Amapá, Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade Tropical, Macapá, 2016.

SIQUEIRA, G. V. Licenciamento ambiental no Amapá: o caso do aproveitamento hidrelétrico de Ferreira Gomes (AHE – FG). 2011. 100 f. Dissertação (mestrado). Dissertação (mestrado) – Fundação Universidade Federal do Amapá, Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental e Políticas Públicas, Macapá, 2011.

 

Material jornalístico consultado:

https://epbr.com.br/eletrobras-assume-suprimento-emergencial-de-energia-no-amapa/

https://www.sinprodf.org.br/empresa-privada-que-administra-energia-eletrica-deixa-amapa-no-apagao/

https://pt.wikipedia.org/wiki/Alupar

https://pt.wikipedia.org/wiki/Energias_de_Portugal

http://www.ons.org.br/paginas/sobre-o-sin/o-que-e-o-sin

https://www.diariodoamapa.com.br/cadernos/ultima-hora/amapa-e-inteligado-ao-sistema-nacional-de-energia-eletrica/

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54843654

https://www.cut.org.br/noticias/apagao-no-amapa-e-culpa-de-empresa-privada-mas-conserto-e-feito-pela-eletrobras-4fce

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