O apagão no Amapá: política energética e neoliberalismo
Vencedora de um “leilão” realizado em 2008, a Isolux arrematou dois dos três lotes de uma concessão (com prazo de 30 anos) para construção, operação e manutenção da Interligação Tucuruí-Macapá-Manaus. Ou seja, é a mesma empresa que construiu e que cuida do famoso Linhão de Tucuruí (famoso por problemas, a galera do Amapá sabe bem), ligando o município de Almerín (no Pará) ao território do lado norte do Rio Amazonas, onde estão as subestações em Oriximiná (PA), Laranjal do Jari (AP) e, claro, Macapá (AP). O Linhão de Tucuruí integrou o Amapá (a partir de 2015) e outras regiões nortistas ao SIN – Sistema Interligado Nacional de produção e transmissão de energia elétrica. Segundo os governantes na época, isso era muito importante. Por quê? Discurso oficial: sustentabilidade, energia limpa, energia renovável, abandonando a necessidade das usinas termoelétricas que eram utilizadas. Na prática: atrair empresas interessadas em fazer barragens, construir hidrelétricas nos rios do Amapá e vender energia gerada ali para outras regiões através do Linhão.
O problema do Amapá não é,
portanto, conexão com outras regiões, nem produção de energia. Existem quatro
usinas no estado. Sozinha a Usina Hidrelétrica de Ferreira Gomes daria para
abastecer quase o estado inteiro, 750 mil pessoas. Ao lado dela, no Rio
Araguari, há mais duas: a da Cachoeira Caldeirão e antiga Usina do Paredão
(Coaracy Nunes). Somente a última é empresa pública, as demais são de capital
privado. A EDP, proprietária da Usina de Cachoeira Caldeirão, também é dona da
Hidrelétrica de Santo Antônio do Jari, em Laranjal do Jari, no sul do estado.
A maior parte da energia produzida nessas usinas privadas é vendida para outros lugares do país, através do Sistema Integrado Nacional. Sim, desde 2015 o Amapá produz energia elétrica para outras partes do país. E é um negócio que dá bilhão! Para terem uma ideia, a ALUPAR, dona da usina de Ferreira Gomes, estimou seu lucro em 2019 em quase 1 bilhão (890 milhões) de reais.
Agora vem o plot twist, a reviravolta. Sabe quem resolveu o problema da falta de energia? A Eletronorte, uma estatal que controla a usina do Paredão, segmento da Eletrobrás, que o atual governo federal está fazendo de tudo para privatizar. Ou seja, mais uma vez os funcionários públicos aparecem para limpar as cagadas da iniciativa privada. Isso porque a Isolux não tinha corpo técnico para solucionar o problema a curto tempo. Redução de custos, sacomé. E se não existisse a Eletronorte para pelo menos amenizar a situação?
O (o)caso da energia no Amapá e a solução parcial do problema ilustra muito bem como a ideologia neoliberal que relaciona diretamente privatização e eficiência não resiste a um sopro de realidade.
Qual é o discurso neoliberal? Que entregar de bandeja (e o termo é esse mesmo) serviços e instituições públicas para empresas privadas melhora a administração e a prestação de serviços à sociedade. Isso porque, em tese, geraria uma concorrência entre as empresas, que abaixariam os preços e/ou melhorariam a qualidade das mercadorias ou serviços para disputar os clientes. Livre-mercado, lei da oferta e da procura, aquela coisa toda que funciona lindamente na teoria, mas que falta combinar com os fatos.
De todo modo, se essa concepção tem relativa validade para certas mercadorias, como objetos e etc. (valeria uma discussão a parte), ela nada vale para “setores estratégicos” como o de energia elétrica. Por quê? A crítica dos liberais, desde que nasceram no século 18, é contra os monopólios. Monopólios típicos do capitalismo mercantil, do próprio Estado sobre a exploração de regiões coloniais, produção ou comercialização de produtos. Ou que o Estado concedia a uma empresa específica a troco centralizar a captação de impostos. Acontece que, no caso da energia e de outros serviços, é mais ou menos isso que atualmente o Estado faz numa privatização. Ele concede a uma empresa privada. Claro, muitas vezes depois de o Estado gastar rios de dinheiro público construindo obras e infraestrutura. Quanto vocês acham que custa uma Usina Hidrelétrica?
A empresa que ganha a concessão não tem concorrente. Não precisa ficar brigando por cliente, abaixando preço. Ou você compra energia dela ou... fica sem. Como toda empresa privada, a prioridade dela é o lucro e não o atendimento das necessidades da sociedade. Interessada em aumentar o lucro e sem concorrência, para diminuir os custos, ela pode reduzir funcionários ou salários ou contratar pessoas sem qualificação técnica (já que o salário é baixo). Mais do que isso, quanto menos ela investir em estruturas materiais novas, menos reformas fizer, menos tiver investido em recursos e equipamentos reservas para eventuais crises, MAIS ela vai lucrar, MAIS vai atingir seu objetivo.
Ao longo da história dos séculos 20 e 21, o Estado tem aparecido em contextos de crise para salvar empresas privadas, através de empréstimos, abatimentos fiscais, perdão de dívidas. A política do neoliberalismo depende obviamente atuação do Estado para reanimar a economia de mercado e reverter a distribuição de riquezas para as classes altas. Em uma das modalidades: verbas públicas destinadas para beneficiar grandes corporações que, por sua vez, colocam o lucro acima de tudo. Por isso o termo “Estado mínimo” é nada mais do que uma artimanha ideológica dos neoliberais, que os fatos contradizem.
Em relação à situação amapaense,
cabe aos órgãos reguladores verificar as falhas da empresa Isolux, a
negligência, os erros do projeto, enfim. E aí, será que ela vai perder a
concessão? Duvido! Depois que outra empresa privada, a Samarco, oriunda da privatização
da Vale, destruiu o Rio Doce e os proprietários saíram ilesos, sabemos bem como
se dá essa relação.
Bibliografia
consultada:
CORRÊA, K. M. A.
A formação do complexo hidrelétrico no Rio Araguari: impactos no ordenamento
territorial de Ferreira Gomes, Amapá. 2018. 128 f. Dissertação (mestrado) –
Fundação Universidade Federal do Amapá, Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Regional, Macapá, 2018.
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; NASCIMENTO, R. L. Linhão de Tucuruí – 1800km de integração regional. T&C
Amazônia, ano VIII, n. 18, I semestre, 2010. Disponível em:
http://www.eniopadilha.com.br/documentos/TucuruiManaus.pdf
HARVEY, D. O
neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
SEVERINO, W. M.
S. Impactos socioeconômicos e ambientais em populações diretamente atingidas
pelo empreendimento hidrelétrico Cachoeira Caldeirão. 2016. 96 f. Dissertação
(mestrado) – Fundação Universidade Federal do Amapá, Programa de Pós-Graduação
em Biodiversidade Tropical, Macapá, 2016.
SIQUEIRA, G. V.
Licenciamento ambiental no Amapá: o caso do aproveitamento hidrelétrico de
Ferreira Gomes (AHE – FG). 2011. 100 f. Dissertação (mestrado). Dissertação
(mestrado) – Fundação Universidade Federal do Amapá, Programa de Pós-Graduação
em Direito Ambiental e Políticas Públicas, Macapá, 2011.
Material
jornalístico consultado:
https://epbr.com.br/eletrobras-assume-suprimento-emergencial-de-energia-no-amapa/
https://www.sinprodf.org.br/empresa-privada-que-administra-energia-eletrica-deixa-amapa-no-apagao/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Alupar
https://pt.wikipedia.org/wiki/Energias_de_Portugal
http://www.ons.org.br/paginas/sobre-o-sin/o-que-e-o-sin
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54843654
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