Todos os suicídios são egoístas


Todos os suicídios são egoístas. Desde 2015 ocorre no país uma campanha de conscientização e prevenção ao suicídio chamada “Setembro Amarelo”. A mobilização é encabeçada pelo CVC – Centro de Valorização da Vida (uma associação civil fundada em 1962) –, juntamente com o Conselho Federal de Medicina e a Associação Brasileira de Psiquiatria. Tal ação educativa faz sentido se levarmos em conta o aumento constante do número de casos no Brasil, sobretudo entre os jovens – 15 a 29 anos. Conforme o Mapa da Violência (2012), a taxa sobe 60% quando comparada a de 1980, são mais de 12 mil suicídios por ano no país. O que não parece ter sentido é a ênfase em resolver ou dirimir o problema através do método mais corriqueiro da medicina: remédios. Explico.

Entre as principais causas apontadas pela OMS estão o uso de álcool e outras drogas, perdas ou luto e transtornos mentais. Exceto pela última, me parece que estes outros fatores ou são desdobramentos de processos problemáticos mais longos ou são apenas gatilhos de uma arma que já estava previamente carregada (desculpem-me a inevitável metáfora). Quer dizer, se a pessoa faz uso contínuo e indiscriminado de drogas que alteram sobremaneira seu estado mental (hiperestimulante, alucinógeno, anestesiante, etc.) e não consegue viver sem tais, pode ser um forte indicativo de problemas mais graves em suas relações interpessoais ou entre si e a realidade. Além disso, a droga se apresenta, em tese, como uma saída individual e pontual para questões sociais. Na prática, uma saída sem sair. “O ópio do povo é o ópio mesmo”, parodiando Marx. Sendo assim, quando a droga não surtir mais efeito ou não mais haver meios para obtê-la, a pessoa pode vir a se matar por não saber lidar com o insuportável, o vazio e o sentimento de isolamento.

Trazendo a sociologia clássica para pensar hipóteses sobre a questão, o francês Émile Durkheim aponta que estes aspectos são decorrentes da fragilidade dos laços sociais, isto é, das cordas invisíveis lançadas nos processos de socialização que promovem coesão entre os indivíduos e as instituições sociais. Este seria, em sua classificação, um suicídio de tipo egoísta. “Egoísta” aqui não quer dizer arrogante, vaidoso, presunçoso, mas, significa, que o indivíduo não enxerga sentido em continuar vivo porque não se sente integrado ou pertencido, não se identifica, se julga superior ou inferior, considera que não participa (no sentido de fazer parte) da sociedade em suas várias instituições – família, trabalho, escola, nação, religião, relacionamentos amorosos e amizades, política, etc. Isto é uma predisposição social bastante típica das civilizações modernas que, sob uma linguagem silenciosa, pode impulsionar indivíduos, por exemplo, a buscar nas drogas uma maneira de lidar com a inadequação. O mesmo valeria para perdas pessoais, como demissões, reprovações em processos seletivos ou luto, perdas de familiares. Se por algum acontecimento circunstancial ou falecimento de um parente, o indivíduo se mata pois não vê mais sentido em estar vivo, é porque os laços sociais que o uniam a outras instituições eram frágeis demais ou inexistiam.

Ao levar em consideração os fatores sociais, compreende-se melhor porque há um aumento no número de suicídios entre os jovens. E não se trata de suicídios anômicos, que seriam aqueles decorrentes de mudanças abruptas, negativas ou positivas, na sociedade. As revoluções morreram no século XX e as crises são diárias, contínuas, estruturais – integram os processos de socialização. São os laços sociais que estão cada vez mais frágeis ao ponto de um adolescente confiar mais em um desconhecido na internet que lhe apresenta um jogo de mutilações do que em seus pais, com quem passa muito menos tempo. O suicídio é uma questão social, aponta Durkheim. Até mesmo o egoísmo é decorrente de uma dada configuração social, ele é estimulado, alimentado e, em certas ocasiões, recompensado (menos filhos, mais dinheiro na conta). Não é que a sociedade é culpada e o indivíduo é mera vítima. Mas sim que a sociedade oportuniza condições de possibilidade (maiores ou menores) para que o suicídio ocorra.

É possível lidar com este cenário apenas através de outras drogas (remédios)? Penso que não. A solução seria momentânea. O tratamento psiquiátrico ajudará de modo particular as pessoas que sofrem de patologias, porém aos demais seria enxugar gelo. O protagonismo do atendimento individualizado parece ser, ironicamente e concordando com Durkheim, outro desdobramento/produto da sociedade ocidental, moderna e superior, cuja tendência central é promover, para o bem e para o mal, o maior grau de individualização, contudo, neste caso, em detrimento da coesão social. No Brasil, com exceção dos indígenas (que aliás têm se suicidado 132% mais do que os não-indígenas) que cometem suicídio altruísta em prol de sua nação atacada, todos os suicídios são egoístas. Entretanto, por sua causa ser social do ponto de vista da sociologia clássica, sua prevenção não pode ser também “egoísta”, repetindo seu erro. O suicídio é um fato social. E se for caso de saúde pública, a doença é fácil de identificação, é exatamente o próprio modelo de sociedade em que vivemos.

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