A inusitada convivência com o carinha-que-morava-logo-aqui
Havia me mudado há poucas semanas para esta "república", foi quando tudo aconteceu.
11 de junho
É sábado. Eu apenas iniciei a faxina. Alguém toca o
interfone. Mas quem será? Não conheço ninguém nessa cidade. Vou à janela olhar
antes de atender (moro no térreo e de frente para o portão). Trata-se de um
rapaz, jovem, todo engomadinho, com naipe de grã-fino. “Rico” desconhecido indo
à casa de pobre geralmente é para vender alguma bugiganga ou buscar drogas.
Como não somos traficantes, esse caboco só pode querer agora me oferecer um
seguro ou alguma coisa de vigilância. Enquanto penso se vou ao interfone
o-carinha-que-mora-logo-aqui e divide aluguel comigo atende e vai até a porta
em passos largos, “são meus amigos”, diz ele. “Amigos? Hahaha... devem ir à
missa juntos”, penso. É quase isso. Entra uma senhora logo atrás do
frufruzento, bem vestida também e de saias longas. Acho que compreendi mas não
quero aceitar. Pego minha vassoura e vou varrendo vou varrendo vou varrendo,
“boa tarde para vocês, fiquem à vontade” e passo para a cozinha. De lá eu
escuto o mais jovem dizendo:
-- “Bem, [diz o-nome-do-carinha-que-mora-logo-aqui], já que
você solicitou nossa visita pelo site e não havia outro dia, viemos hoje. Como
você já deve saber, nós testemunhas de jeová...”
Nesse momento estou bastante chocado e varro a área de
serviço com sofreguidão. Ao que tudo indica, meu colega de aluguel, diferentemente
de 99,5% dos hominídeos de uma espécie cordata bípede e primata que faz uso dos
braços para manipular objetos e do cérebro para elaborar pensamentos abstratos,
não só deseja como também solicita a presença de testemunhas de jeová.
Ok. Continuei a limpeza. Sei que Jesus aprovaria. E
obviamente foi um estudo bíblico com aquele cheiro gostoso de Pinho Sol.
PS.: não, não tenho nada contra testemunhas (inclusive
tenho até amigos que são). Somente desaprovo a perturbação do sono alheio
muitas vezes no único dia de descanso do pobre ateu agnóstico pagão satanista.
PS. II: ao terminar a faxina corri para o quarto e fui ouvir
um Black Sabbath, pq né, cada um com seus ritos.
...
24 de julho
Domingueira à noite rachando aquele marasmo federal de
Faustão Futebol e Programa Silvio Santos e “Não sei o que fazer eu saio por
aí”, vou à geladeira a fim de ingerir algo nocivo ao organismo. E o
carinha-que-mora-logo-aqui está esparramadão em nosso colecionador de ácaros
favorito (vulgo sofá). Cena atípica, mes amis. Está com o seu Nokia 3220 na mão
piscando feito boate da Rua Augusta e assistindo qualquer coisa de procedência
duvidosa em inglês.
- O que você tá vendo, broda?
- Uma série aqui.
- Loko, hein. Qual é o nome dessa parada, mermaum?
- Os originais.
- Noh. Boto fé. É aquela série de lobisomens adolescentes,
né? Vamos ser sincero, essa porra aí é tipo uma Malhação dos Lobisomens, mas
sem o Cabeção.
- Mais ou menos. Eu gosto. É melhor do que assistir Gugu,
né?
- Ah mas aí também né, fiote. Baixa uma série aí, brou, se
chama Breaking Bad e tem altas drogas, os caras ficam lokasso, mó tóxico,
química do mal.
- Ah não. Essa eu não gosto, não.
Foda. Queria levar o abiguinho para o caminho da escuridão
mas acho que os testemunhas foram mais ligeiros do que eu. Dias de luta, dias
sem glória
...
11 de agosto
Rolando um sério e vigoroso estudo bíblico na sala. Juro
para vocês que me trancafio no quarto ouvindo rocks satanistas e divas do pop.
Mas uma hora, sacomé, a gente tem que ir tomar uma água, comer um breguete e tale
coisa. Vou até a cozinha saciar o velociraptor que-tá-saindo-da-jaula-o-monstro
de dentro do meu estômago. De lá escuto:
- Ok. Podemos encerrar por hoje. Mas nós te passamos uma
tarefa da última vez. Você lembra?
- Sim. Era para descobrir quantos livros têm na Bíblia.
- E quantos são?
- 66.
- Como você sabe?
- Eu pesquisei.
- Onde?
- Joguei no Google.
A essa altura já estou cuspindo pão com leite e achocolatado
por toda a cozinha. Eles percebem e dão aquela risadinha para descontrair de
maneira forçada. Passo pela sala pedindo desculpas ao
carinha-que-mora-logo-aqui e vou me trancafiar novamente no calabouço.
...
6 de março
Comunico a vossas senhorias que o carinha-que-mora-logo-aqui
não mora mais aqui. Mudou-se. Escafedeu-se. Foi preencher outro lar com aquela
estranha alegria gospel-sertaneja e "tchau-brigado-e-aleluia". Saiu
mas não saiu sem alarde. O caminhão que levava suas roupas e seus folhetos da
Sentinela adentrou por vielas labirínticas tocando em alto e límpido som "I
Will Always Love You" da Whitney Houston como se um recado estivesse sendo
transmitido àqueles que ficam. Triste, me resignei.
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