O capitalismo teria sido capaz de imitar a teleologia cristã?



Sempre imaginei que a vida produtiva no capitalismo (e é só no capitalismo que conheço) era mais ou menos parecida com a escatologia/teleologia cristã e talvez esta fosse uma razão para que nossa cultura se adaptasse relativamente bem a este modo de organizar o social e o individual, lados de uma mesma moeda. 

Como assim? Sei lá, lendo de modo grosseiro a teleologia do cristianismo, é você ganhar algo como um bilhete premiado e nascer (a vida é um dádiva divina). Mas, a despeito disso, você vive para sofrer ou vive em dificuldade, melhor dizendo, vive para pagar seus pecados originais ou paraguaios. Trata-se de uma vida de penitência, de provação, uma espécie de ENEM com somente questões de exatas para ver se você é capaz de gozar a vida eterna ao lado de Deus-Pai. O reino dos céus é o que realmente importa, por isso você é capaz de aguentar tudo, dar a outra face, dar a César o que é de César (não se meta com a política). Posso sofrer já que minha vida sem sofrimentos, sem angústias, meu real deleite será quando isso acabar (e se for preciso passarei no purgatório para pagar o que deixei de pagar aqui no mundão). Depois que você morre tudo fica bem. Você acessa o paraíso celestial. Terá todo o tempo do mundo para passear naqueles bosques esverdeados, numa terra que corre leite e mel, com anjos gordinhos do cabelo loiro anelado tocando em harpas estrofes mais tranquilas (e tediosas) do que as músicas do Guilherme Arantes. 

Essa narrativa é assim: coisa boa (início, nascimento) -> coisa ruim que dura muito tempo (a vida em si sob a perspectiva cristã ascética) -> coisa ruim mas é uma passagem que traz uma promessa de futuro melhor/sensacional (é a esperança que te faz resignar) -> coisa muito boa, acaba mas não tem fim (porque não existe tempo cronológico, é Aion ou Kairós, é cíclico, eterno ou é o tempo de Deus). 

Nossa vida no modo de produção capitalista é uma maquete malfeita da teleologia cristã. Você consegue um emprego (coisa boa, sob a perspectiva capitalista/sobrevivência, claro). Daí vem o tempo difícil, duro, trabalhar quando você é obrigado cansa, né? Não é melhor se divertir, viajar, consumir, comer, beber, dormir? É. Mas você precisa trabalhar, produzir, contribuir, se quiser possuir um tempo final que pode ser o tempo mesmo ou o dinheiro (time is money, allright Mr. Benja Franklin?) para poder realizar todas estas coisas. Quer dizer, esta é a promessa. A promessa de um futuro muito melhor. A cultura capitalista te vende essa ideia de modo implícito. “Ah... vou ralar muito agora, tenho que suportar meu chefe me cobrando, meu salário nem tão bom, mas depois vou viver de verdade, vou aproveitar tudo o que há nessa vida, assim que me aposentar”. Opa, a religião cristã te prometeu algo parecido. 

Com a chamada hipermodernidade, as certezas se esvaíram. A religião já não dá mais tanta segurança assim. As pessoas acreditam, mas acreditam daquele jeito maroto, não é mesmo?! O emprego já não é mais algo estável, duradouro, sofrido ele ainda é, mas não mais contínuo e promissor. As pessoas agora estão vivendo conforme uma maquete da maquete, encurtando a teleologia pois os tempos são líquidos, fugazes, efêmeros, a solidez se desmanchou no ar. Agora em vez de sofrer uma vida inteira para aproveitar no final da vida, rala-se durante a semana. Os memes atestam que segunda-feira é o dia mais sofrido. A semana passa e chega sexta-feira e com ela o decreto do final de semana (você sofreu agora pode aproveitar). Despirocam. Tocam o terror. Bebem até morrer. Gastam o que não tem. Tudo recomeça na segunda e assim vai. Até as folgas do final de semana são organizadas sob esta ordem. E as férias também. Você sofre durante o ano todo para depois, no fim, ganhar um 13º e comprar um monte de bugigangas ou fazer aquela viagem que sonhou; ou ir para Guarapari mesmo, nesse caso seu paraíso é modesto. Você sofreu pouco. Ah essa meritocracia do sofrimento! 

Com a reforma previdenciária eu sei lá como as pessoas vão lidar daqui um tempo quando não existir mais sequer a esperança (eu sei que é vã) de dias melhores num final grandioso. Vai dar um curto-circuito no imaginário social, certeza. Seria obra do tinhoso?

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