Feriado no Amapá, dia de Cabralzinho: controvérsias de um herói

Imagem da Praça Veiga Cabral, estátua do Cabralzinho


15 de maio, feriado estadual no Amapá. Dia de Cabralzinho. “Cabralzinho? Quem é esse maluco? Os caras fazem feriado até para filho de ‘‘‘‘‘descobridor’’’’’ do Brazeel?” Não. Cabralzinho é um herói regional, nobres “sulistas”. Desconhecido do resto do país e até de boa parte dos amapaenses, ele foi um político liberal, conquistador, comerciante e maçom (fonte: Wikipédia). Nascido em Belém e envolvido em outras revoltas, a trajetória de Francisco Xavier da Veiga Cabral (nome de batismo do sujeito) dá margem a controvérsias. 

“Mas por que criaram um feriado para esse caboclo?” Ele lutou contra os franceses na disputa pelo território do Amapá, ora pois, exatamente em 1895. A França já tentou um punhado de vezes dizer “je suis Amapá”, cês não fazem ideia. Desde pelo menos 1503 os comedores de croissant querem colonizar nosso país. Da baía da Guanabara, onde ainda hoje há o nome francês de uma ilha (Villegagnon), passando pela fundação da capital do Maranhão (Saint Louis, que homenageia um rei francês) à anexação do Cabo Norte (atual Amapá e adjacências), este último desde que se instalaram em Caiena, hoje capital da Guiana Francesa, por ter sido expulsos pelos portugas e pelo rei ibérico Filipe-Algum-Número-Romano.

A última tentativa de conquista do Amapá pelos inventores do bidê foi no episódio de 15 de maio de 1895, que consagrou Cabralzinho como herói. A região entre os rios Oiapoque e Araguari (não é o Araguari mineiro, popular Rio das Velhas) era considerada “contestada” entre Guiana Francesa e Brasil, portanto “neutra” igual sabão líquido (isso a partir de 1841). Antes pertencente como província ao Pará ou Grão-Pará, o território passou a ser governado em teoria por lideranças das duas nações, porém, na prática, era por quem morasse ali e conseguisse impor sua força – geralmente sujeitos ricos ou notórios que se autoproclamavam autoridades. Cabralzinho, cabra valente, revólver na mão, era um desses. Trajano Benitez era outro. Este último, um ex-escravo fugido do Pará e agora a serviço dos franceses, tentou até mesmo fundar uma república independente na região, a República do Cunani, onde se falaria o francês e estranhamente seguiria legislação da França (durou apenas dois anos). 

O relativo vácuo de poder centralizado deu espaço a disputas mais acirradas quando em 1894 encontraram ouro (muito ouro) às margens do Rio Calçoene. Daí veio gente de tudo quanto é buraco para a região (por isso ama-pá) e o interesse aumentou. O acordo de neutralidade foi quebrado no momento em que a França nomeou mais um representante legal para a região, o tal Trajano Benitez. Fontes afirmam (expressão para dar aquele ar de transparência científica) que Trajano era bicho solto, aterrorizava os brasileiros, expulsava garimpeiros não-franceses e certa vez queimara a bandeira nacional. #chocado

O estopim se deu quando autoridades francesas proibiram os brasileiros de ocuparem os garimpos. A resposta dos brasucas foi imediata. Na Vila do Espírito Santo do Amapá (atual município homônimo ao estado) um grupo de líderes locais, entre os quais o nosso magnânimo Cabralzinho, decidiu tornar sem efeito a proibição dos franceses. “Não é val”, afirmaram. Porém Desidério Antonio Coelho, que era a maior autoridade legal do Brasil no Contestado, não quis assumir este B.O. sozinho e renunciou. “Tô de boa dessa treta aí, macho” – declarou. Diante do impasse, a população do vilarejo elegeu um triunvirato (feels like Rome) para exercer o poder. Faziam parte deste governo de três, os três: cônego Domingo Maltês (que dá nome à rua onde hoje me refugio), como presidente, Cabralzinho (sempre ele!) e o próprio Desidério, como vices. Feito isso, criou-se uma legislação e uma milícia que funcionava como exército. 

Cabralzinho não foi um vice decorativo, não. Tanto que substituiu o cônego na presidência meses depois e mandou prender Trajano. Informado da criação da junta de poder e da prisão de Trajano, o então governador da Guiana (M. Charvein) ficou pistola e enviou uma tropa de 80 soldados para prenderem Little Cabral. No dia 15 de maio de 1895 o exército francês chegou à Vila para cumprir sua missão. Cabralzinho resistiu. Hasteou bandeira brasileira em sua casa. O capitão que tentou lhe prender foi morto, não se sabe se por ele ou por outro. Seguiu-se um tiroteio e caos de guerra. Menino chorando, homem correndo, mulher gritando, cachorro latindo, galinha piando... um cabaré de cegos! Os líderes brasileiros conseguiram fugir para a floresta. E os soldados franceses resolveram vingar a morte de seu capitão, matando a sangue frio dezenas de civis (inclusive crianças) que habitavam a Vila de Espírito Santo do Amapá. Um horror.

O episódio repercutiu em toda a imprensa brasileira, causando comoção. A França reconheceu a responsabilidade do governador da Guiana, decretando sua exoneração. Cabralzinho se apresentou como combatente a serviço do Brasil em todo o país, foi reconhecido e laureado como herói e nomeado general honorário do Exército Brasileiro. Cinco anos depois do ocorrido, em 1900, isentões do governo suíço foram escolhidos para arbitrarem a legitimidade da posse das terras do Amapá e julgaram estas de direito do Brasil. É tetra!!!

Controvérsias: há historiadores que olham com bastante cautela o papel de Cabralzinho no litígio franco-brasileiro. Não haveria provas de que ele teria sido tão importante assim, sendo só mais um do vilarejo participante da resistência. Alguns dizem que o heroísmo foi na verdade puro marketing pessoal. Até porque ele fugiu antes do massacre. Para a imprensa francesa da época, em vez de herói, ele foi um dos responsáveis pelo derramamento de sangue ao executar o capitão. É claro que, como comerciante, Little Cabral estava interessado na extração de ouro da região, por isso a proibição de acesso a brasileiros afetava diretamente seus negócios.

Decretado em julho de 2017, o 15 de maio tornou-se feriado por aqui. Ninguém reclama. A imagem acima é da Praça Veiga Cabral, em Macapá, onde existe a estátua homenageando Cabralzinho. Lugares de memória. Pois a memória também é construída, inventada.

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