Vida privada na era colonial: entradas [Laura de Melo e Souza]


"Em 10 de março de 1769, partia de Araritaguaba, São Paulo, uma expedição acomodada em 36 embarcações e composta por setecentos e tantos homens, mulheres, rapazes, crianças de todas as idades, além de soldados pagos e animais. A viagem duraria dois meses e dois dias.

A viagem foi uma odisséia. Logo no começo, duas das mulheres pariram. Um, de nação Bororo, retirou-se “um pouco do tumulto da gente”, e, junto ao mato de uma prainha, deu à luz a criança, levando-a, em seguida, e sempre sozinha, para banhar-se com ela no rio; no dia seguinte, “andava sem moléstia alguma”. A outra, solteira e filha de um povoador, achava-se grávida sem que a família soubesse; não podendo mais sofrer os “ardores do parto”, e sem condições de retirar-se, teve que expor sua intimidade, parindo “publicamente no meio e à vista de tanto povo”. Passados poucos dias, manifestou-se entre os povoadores uma diarréia generalizada, então vulgarmente conhecida por corrução. Mais uma vez, violou-se o caráter privado de atos íntimos, os doentes tendo de fazer suas necessidades corporais onde fosse possível, uns tentando se esconder nos matos, outros, desfalecidos e sem poder se movimentar, tendo de ser carregados em redes ou removidos pelos sãos. Em seguida, sobreveio uma tempestade, sendo necessário embicar as embarcações no barranco e prendê-las com cordas de ferro aos troncos e às raízes das árvores das margens; as rezas e ladainhas não impediam que caíssem dois raios. Passada a noite de horrores, amanheceu morta uma criança, dando-se-lhe sepultura no mato. Decidiu-se então que era melhor saltar em terra, cada família fazendo a sua fogueira para se aquentar e cozinhar comida – como que tentando refazer, após tanta exposição pública de dores, vergonhas e doenças, a privacidade esfrangalhada".

SOUZA, Laura de Melo e. Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações. In: NOVAIS, Fernando (org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 71-72.

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