A falácia do capitalismo imemorial e como natureza [Karl Polanyi]



“Um pensador do quilate de Adam Smith sugeriu que a divisão do trabalho na sociedade dependia da existência de mercados ou, como ele colocou, da ‘propensão do homem de barganhar, permutar e trocar uma coisa pela outra’. Esta frase resultou, mais tarde, no conceito de Homem Econômico. Em retrospecto, pode-se dizer que nenhuma leitura errada do passado foi tão profética do futuro. Na verdade, até a época de Adam Smith, essa propensão não se havia manifestado em qualquer escala considerável na vida de qualquer comunidade pesquisada e, quando muito, permanecia como aspecto subordinado da vida econômica. Uma centena de anos mais tarde, porém, já estava em pleno funcionamento um sistema industrial na maior parte do planeta e, prática e teoricamente, isto significava que a raça humana fora sacudida em todas as suas atividades econômicas, se não também nas suas buscas políticas, intelectuais e espirituais, por essa propensão particular.

Na segunda metade do século XIX, Herbert Spencer, com um conhecimento muito superficial de economia, pode equacionar o princípio da divisão do trabalho com a barganha e a troca e, cerca de cinquenta anos mais tarde, Ludwig von Mises e Walter Lippman puderam repetir a mesma falácia. Nessa ocasião, não havia necessidade de argumentos. Uma série de escritores de economia política, história social, filosofia política e sociologia em geral havia seguido na esteira de Smith e estabelecido o seu paradigma do selvagem barganhador com axioma das suas respectivas ciências. Na realidade, as sugestões de Adam Smith sobre a psicologia econômica do homem primitivo eram tão falsas como as de Rousseau sobre a psicologia política do selvagem. A divisão do trabalho, um fenômeno tão antigo como a sociedade, origina-se de diferenças inerentes a fatos como sexo, geografia e capacidade individual. A alegada propensão do homem para a barganha, permuta e troca é quase que inteiramente apócrifa. A história e a etnografia conhecem várias espécies de economia, a maioria delas incluindo a instituições do mercado, mas elas não conhecem nenhuma economia anterior à nossa que seja controlada e regulada por mercados, mesmo aproximadamente. Isto tornar-se-á perfeitamente claro numa rápida visão da história dos sistemas econômicos e mercados, apresentados separadamente. O papel desempenhado pelos mercados na economia interna de vários países, parece, foi insignificante até época recente e a mudança total para uma economia dominada por padrões de mercados ficará ainda mais ressaltada”.

POLANYI, Karl. A grande transformação: origens de nossa época. [orig. 1944]. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 62-63.

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