Sobre crime, cadeia e crueldade. O que isso tem a ver com nossa sociedade?



I.

Admiro a insistência de quem pretende informar corretamente a respeito do auxílio-reclusão. Há uns quatro anos no mínimo correm textos falsos sobre o que chamam de “bolsa-presidiário”. Até mesmo a fanpage do senado criou um infográfico para dissuadir as mentiras e distorções e desde então a galera pacientemente vem compartilhando-o. Vou ser honesto: não adianta nada. Ao menos não na internet. Aquele que acredita que o governo está sustentando vagabundo, que está dando 2 mil reais por cada filho que um preso tem, sempre e necessariamente vai continuar acreditando nisso, mesmo com toda a informação do mundo. Pouco importa o que é verdade, importa em que se acredita ou em que não se quer acreditar. Quando você o informa dizendo que apenas recebe o benefício (e não são 2 mil, mas uma média de últimos salários, em geral menos de um salário mínimo) o recluso com carteira de trabalho assinada e que, portanto, pagava impostos para gozar deste direito, o interlocutor vai lhe dizer que mesmo assim não concorda. “Tem é que jogar o vagabundo na cela e deixar apodrecer”. A ideia é fazer sofrer, se vingar. Não existe esse papo de reeducar, “recuperação”, ressocialização. Isso é apenas besteira no papel. E não interessa se o cara matou, roubou, estuprou ou foi preso por não pagar pensão-alimentícia, atropelou alguém, falsificou documento, agrediu, vendeu DVD pirata ou destruiu patrimônio. Se está na cadeia, é tudo a mesma coisa: lixo.

Por mais ou menos dois anos trabalhei numa penitenciária, como a maioria sabe. Dos 600 presos que lá havia e contando a alta rotatividade (e dos 100/150 que eu tive contato por frequentarem a escola neste período), apenas UM recebia o tal auxílio-reclusão. Ele era funcionário da Sadia e também um pequeno traficante. Certa feita, numa discussão de internet (no tempo em que eu ainda praticava este esporte radical, uns três anos atrás) sobre este assunto, caí na bobeira de dizer ao interlocutor que eu havia trabalhado na cadeia como professor. “Como pode?” “Gente que defende bandido para mim também é bandido”. “Tem que apanhar também”. Não, o cara não era o que vocês chamam de cidadão-médio nem uma pessoa sem recursos ou acesso a informações e a cultura letrada. Era amigo de uma amiga e fazia graduação numa universidade pública na área de computação. Como este vi tantos na internet e lá fora, de todas as “classes sociais” possíveis: pobre, rico, preto, branco, omi, muié, gay. Conversei com diversas pessoas sobre o assunto auxílio-reclusão e as únicas que acreditaram em como funcionava o direito eram aquelas que já estavam dispostas a acreditar antes da conversa. Na grande maioria dos casos tem sido assim, e me parece que aqueles que pensam em transformação social pela via de acesso à informação e/ou construção do conhecimento, continuam e vão continuar tentando informar (às vezes como se fossem portadores da luz, que nem dizem os conservadores) porque talvez não saibam como fazer diferente ou deixar de fazer o que sempre fizeram a partir de um determinado momento. São motivados por esperança, não por eficiência. Parece que continuamos a fazer por causa de nós mesmos. Quando tentamos “salvar” os outros, o que desejamos inconscientemente, na verdade, é assegurar nossa própria “salvação”.

Sinceramente acho que devemos parar de romantizar a informação e o conhecimento. A razão perdeu. Não, isso não é pós-modernismo. Aos olhos pós-modernistas, em geral, tal condição seria libertadora. Mas não é. Estamos à deriva.

II.

“As pessoas não são cruéis elas só estão perdidas”. Desculpa aí, Criolo. Vou ter que discordar parcialmente de você. As pessoas em geral são, sim, cruéis. Isto é, ao menos quando envolve seus interesses. E quase sempre interesses estão envolvidos numa relação social. Há o interesse em fazer o outro feliz mas isso é quando a pessoa nutre algum sentimento por você (amizades, família, amores). Ou, se for desconhecida, se sensibiliza contigo caso esteja em um dado momento numa condição pior do que a dela (ao se imaginar em seu lugar, passa então a ver ela mesma em seus olhos). Mas este é um processo complexo, hein, pois depende de a pessoa lhe reconhecer como um “igual”. A religião cristã tentou em vão educar neste sentido (digo “educar” porque há um sistema de recompensa envolvido, mas que compete com outros e que nunca governou sozinho o mundo). “Amar ao próximo como a ti mesmo”. O problema, repito, é identificar quem é meu próximo. E isso não é totalmente no âmbito do inteligível, tem mais a ver com a esfera do sensível. O ladrão é meu próximo? Tenho que amá-lo? Provavelmente a resposta é não. Mas vamos ser menos óbvios. O homossexual é meu próximo? O negro é meu próximo? A feminista é meu próximo? O dono da multinacional é meu próximo? O boi abatido servido à minha mesa é meu próximo? O vice-presidente é meu próximo? Jair Bolsonaro é meu próximo? “O mundo só será inteiramente livre quando o último rei morrer enforcado com as tripas do último padre”, disse o iluminista preterido. “Bandido bom é bandido morto”, disse o cidadão brasileiro. Tem para todos os gostos.

A frase de Criolo infere uma crença bastante comum: a de que é a falta ou a distorção de informação que provoca a crueldade nas pessoas. Elas estão cruéis porque desorientadas. Porque foram induzidas a odiar assistindo ao Datena e o Jornal Nacional, pela Internet, em escolas, nas igrejas, nas empresas em que trabalham para comprar coisas que pensam que precisam, enfim, pela máquina de produzir ‘verdades’ que controla esta sociedade. “O homem é bom mas a sociedade o corrompe”. Será mesmo, Sr. Rousseau? Não conhecemos ‘o homem’ fora da sociedade. Onde quer que tenha havido sociedade, seja no passado longínquo ou moderno, seja ao norte ou oriente, o homem não se mostrou tão melhor do que esta versão ocidental que conhecemos atualmente (exceto naquelas exceções em que o processo de identificação via sensibilidade e/ou dava-se sob laços familiares muito fortes como em grupos indígenas. Mesmo assim, neste último caso, não foi a informação racional que os salvou. E vale ressaltar que tal fraternidade só era válida dentro de um mesmo coletivo, aos demais, guerras). Hobbes? Dane-se Hobbes! A invenção do Estado moderno foi só um momento em que arrumaram uma justificativa credível (promessa de segurança) para uns poucos poderem usar a violência com a certeza de que não a receberiam de volta. O Estado é uma grande facção. E o mercado, seu maior e verdadeiro cliente.

Resolver este imbróglio? Para alguns, basta tomarmos a máquina de produção de ‘verdades’ para que orientemos as pessoas no caminho da luz ao contarmos a verdadeira verdade sobre o mundo (e aqui ainda discutem sobre o método). Para os mesmos, o complemento seria inventarmos um sistema de recompensa diferente de todos os que funcionaram até hoje, de modo que este neutralizasse a crueldade inerente à experiência humana no planeta. Mas falta combinar com as pessoas. Pois até hoje não se inventou algo capaz de ensinar a querer, até porque para aprender, antes a pessoa tem que querer. E ninguém pode nos salvar de nós mesmos.

É chegada a hora de perdermos todas as esperanças ou falta muito ainda para o fundo do poço?

III.

Dos mais ou menos 200 presos que tive contato quando dava aulas na cadeia, o único que recebia o tal auxílio-reclusão era chamado pelos demais de “Chocolate”. Chocolate, obviamente negro, devia ter por volta de 30 anos de idade e, além de atuar como pequeno traficante, cortava frangos na Sadia antes de “cair”. Tratava-se de um sujeito nitidamente inteligente, articulado e com boa caligrafia, embora não tivesse concluído o ensino fundamental. Apesar de não ser detalhista quando falava de si, era acima da média em sinceridade.

Um dia o inquiri a fim de saber se se tratava de um cara com mesmo apelido, famoso por se envolver em brigas de gangue na escola onde fui estagiário. Ao cabo descobri que provavelmente era outro, ele morava noutra quebrada da cidade. Mas neste dia Chocolate contou que estava em vias de ser transferido para o regime semiaberto. Questionado sobre se voltaria ao mundo do crime, respondeu que preferia não, mas que era difícil pois já conhecia a realidade do egresso. A única empresa que aceitava ex-presidiários era a própria Sadia. Foi então que descobri que ele era reincidente (quase 90% dos casos ali).

Em seu entender, o problema começava com o salário pago pela Sadia, o mínimo mais alguns benefícios. E ele possuía esposa e três filhos, que viviam naquele momento do auxílio-reclusão. Lá fora, mesmo empregado, sua família sobreviveria com menos do que quando preso ele estivesse, já que além dos gastos dos quatro, ainda teria o dele. Eu compreendia o raciocínio. Relatou que os gastos iam aumentar, a esposa não tinha com quem deixar o filho mais novo e uma filha adolescente estava terminando o ensino médio. Adolescente gasta muito, né. E queria prestar vestibular. Além disso, falou da moto que possuía e do aumento de preço da gasolina. “Não vou vender minha moto”, confessou. Quer dizer, eu entendo que as pessoas querem que os pós-presidiários ou os pré-presidiários aceitem a mesma condição daqueles que vivem abaixo da linha da pobreza no Brasil. Que se contentem com aquele emprego desossando os frangos que vocês comem, coletando o lixo que produzimos, cortando a cana que vai abastecer seu carro flex ou limpando o banheiro do aeroporto de sua cidade. E recebendo menos do que a soma do que você paga em IPVA, seguro de saúde e mensalidade escolar de seus filhos. Mas adivinha só. Estes caras querem ser VOCÊ ou até mais do que você. E estão dispostos a ser violentos e cruéis para isso, basta uma oportunidade.

Naquele dia Chocolate me informou indiretamente que continuaria vendendo drogas em seu bairro. Eu, sem saber o que falar ao final da conversa, só pude lhe dizer para que pensasse melhor qual era o preço da liberdade, ainda que vazia. Dele não tive mais notícias.

IV.

Os pré-presidiários são pessoas que nem a gente e querem viver com dignidade. E dignidade nesta sociedade consumista não é, vão me desculpar, trabalhar, trabalhar e sobreviver. Dignidade é consumir, é assim que se tem reconhecimento social. E é por isso que as casas dos alunos de um bairro onde dei aula não eram sequer rebocadas, mas eles, os alunos, tinham celulares mais modernos do que o meu. Há uma linguagem oculta nos induzindo a consumir o que for melhor dentro do possível. E o limite do possível em ação pode ser um para um e outro para o outro. Você passa a desejar coisas sem parar. Traficar, roubar e matar é ser digno? Isso é errado. Sim, é errado e imoral, é pecado e o inferno te aguarda, mas isso para a religião cristã. E eles, os presidiários, são iguaizinhos a vocês neste aspecto. São religiosos cristãos, rezam, vão ao culto e à missa, não toleram gays e mulheres adúlteras. Mas na hora de seguir os mandamentos todinhos... vixe. Na hora de amar ao próximo como a ti mesmo... deu ruim. Tem outro sistema de recompensa funcionando! Muito mais tentador, aliás. Roubar, matar e traficar é errado para sua consciência, mas e se o mundo lá fora não sabe e só enxerga sucesso refletindo nas coisas que você consome e ostenta?

Alguma coisa me diz que há algo muito errado com o sistema de recompensas que utilizamos e é ele o produtor da linguagem oculta da qual falei. Cadeia não vai resolver o problema, ela é parte do problema. E se for para continuar do mesmo modo, os fãs do Bolsonaro têm toda a razão, é mais eficiente matar. Mata tudo. Apesar disso, acho que não vai adiantar, hein. Há uma porção de lugares com pena de morte que não resolveram o problema do crime violento (estou usando este termo porque eu sei que a questão para vocês não é o crime, mas o uso da violência para praticar o crime, certo?). Felizes são aqueles que podem roubar e matar sem precisar dispor destes meios execráveis!

“Mas, calma aí, você esteve dizendo este tempo todo que pobreza gera violência? Então por que todo mundo que é pobre não rouba e mata? Não é porque eu não tenho condições de comprar um Iphone 6 que vou sair por aí com uma sete-meia-cinco assaltando os outros”. Ok. Você está certo, caro interlocutor imaginário. E eu não disse que pobreza gera instantânea e diretamente crimes violentos. Não há matemática (equivalências e exatidões) neste raciocínio ardiloso sobre o comportamento humano. Até porque vale ressaltar que outros elementos compõem nossa cultura. Existem outros sistemas de recompensa envolvidos, como a religião cristã e a moral fraternal baseada nela, por exemplo. Estes são obstrutores, sem dúvida, para nossa crueldade. Mas estou quase totalmente convencido de que no Brasil o crime passa em geral por uma relação com a sociedade consumista e seu sistema de recompensas. A imensa maioria dos crimes em nosso país envolve propriedade. Aqui não temos a figura do serial killer americano que mata aleatoriamente por puro prazer. Exceto os homicídios que envolvem a honra e os estupradores (em menor número e por sua vez relativos a outro matiz do conceito de “propriedade”), os criminosos brasileiros são assaltantes, sequestradores, traficantes (de drogas, armas e pessoas) e latrocidas.

Mesmo assim não quer dizer que todos os pobres ou miseráveis praticarão crimes violentos. Menos mal, agradeça por isso, senão estaríamos vivendo literalmente a versão penitenciária do conto “O alienista” (Machado de Assis). A despeito disso, se alguns praticam e obtém frutos positivos, é porque a oportunidade compareceu ao encontro com a decisão. Mas qual razão? Seria importante descobrir. Sendo impossível saber, podemos verificar, por outro lado, se pessoas vivendo em situação de pobreza e em convivência com criminosos violentos não podem (algumas delas e em maior proporção do que os ricos) encontrar ali uma oportunidade de conseguir o bem material que a sociedade consumista lhe instigou a desejar (mas que não ofertou meios legais para o indivíduo conquistá-lo).


Isto sim seria ir à raiz do problema. Porém parece que não querem descobrir ou talvez já tenham descoberto e não querem revelar. Caso esta hipótese seja confirmada, dificultar os meios de acesso aos bens de consumo (por ex.: retirando direitos trabalhistas, aumentando o preço dos produtos e etc.) é dar início à construção de uma gigantesca usina de crimes e violência. E aí neste cenário, não haverá leis severas, cercas elétricas, alarmes e aumento de cadeias que deem jeito. O mundo do crime violento será cada vez mais cruel e sofisticado. Quero nem ver.

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