Museus: documentos de civilização, documentos de barbárie [Silvia Lara e Walter Benjamin]


“O conhecidíssimo Museu Britânico, aberto ao público a partir de 1753 por um decreto do Parlamento, conheceu seu período de glória no século 19. Foi justamente com a expansão do Império Britânico que se reuniu a maior parte de seu acervo: quem já ouviu falar dos imensos tesouros gregos, egípcios e orientais que ocupam salas e salas deste museu? Reunidos através da guerra, da dominação e da conquista, este acervo documenta e ostenta o poderio do Império Britânico. Este sentido está presente até hoje, de forma ampliada. Quem andar por algumas das salas dedicadas ao Egito antigo verá uma grande quantidade de múmias obtidas através do saque, expostas como testemunhos de um passado exótico e acompanhadas de pequenos letreiros que informam a causa mortis da pessoa ali mumificada, indicando muitas vezes que aquela doença é ou poderia ser curável hoje em dia. Para além da ostentação do poder e da glória do Império Britânico (ou de seu passado glorioso...) justapõe-se, até hoje, a exaltação das maravilhas da técnica, do progresso e da civilização – da superioridade da cultura ocidental.

Um outro, tão famoso e importante quanto ele, o Museu do Louvre, tem características bastante semelhantes. Criado pela Convenção em 1793, o Louvre também conheceu seu período áureo no século 19 e teve seu acerto enriquecido com a expansão napoleônica e seus desdobramentos. A Vênus de Milo e a Vitória de Samatrácia – talvez suas peças mais famosas – vieram de onde e pelas mãos de quem?”


LARA, Silvia Hunold. História, memória e museu. Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, DPH, n. 200, 1991, p. 100-101.

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“Fustel de Coulanges recomenda ao historiador interessado em ressuscitar uma época que esqueça tudo o que sabe sobre fases posteriores da história. Impossível caracterizar melhor o método com o qual rompeu o materialismo histórico. Esse método é o da empatia. Sua origem é a inércia do coração, a ‘acedia’, que desespera de apropriar-se da verdadeira imagem histórica, em seu relampejar fugaz. Para os teólogos medievais, a ‘acedia’ era o primeiro fundamento da tristeza. Flaubert, que a conhecia, escreveu: “poucas pessoas adivinharam quantos ficaram entristecidos por ressuscitar Cartago”. A natureza dessa tristeza se tornará mais clara se nos perguntarmos com ‘quem’ o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corveia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo”.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 225.

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