Estado Islâmico e terror de Estado na Síria


“Um movimento de reforma tornou-se uma revolução plena após um incidente-estopim na cidade de Deraa. Quinze garotos estudantes, alguns tão novos, com dez anos de idade, foram presos pelas forças de segurança do regime sob a supervisão do primo de al-Assad, general Atef Najib, por picharem palavras pró-democracia nas paredes da sua escola. Alguns dos slogans eram adotados das transmissões de TV sobre outros países, mas uma frase especialmente criativa que rima em arábico, dizia: “É sua vez, Doutor”, referindo-se ao diploma em oftalmologia de al-Assad. Um relato comum do que se seguiu diz que quando as famílias dos detentos disseram a Najib que estes eram seus únicos filhos, ele respondeu: “Mandem-nos suas esposas e faremos filhos novos para vocês”.

Protestos similares logo irromperam em Damasco, Homs, Baniyas e, então, por toda a Síria. A resposta foi a violência de estado disseminada. Muitos manifestantes e ativistas pacíficos levaram tiros da polícia, polícia de choque, Mukhabarat e milicianos pró-al-Assad. Outros foram presos e levados à força para uma série de prisões de segurança. Como documentado pelo Observatório dos Direitos Humanos, a polícia secreta usou uma ampla gama de torturas contra seus presos, incluindo: surras com canos, chicotes, choques elétricos, queimaduras com ácidos, extrações de unhas, bastonadas e falsas execuções. Detentos de todos os gêneros e idades também foram estuprados. Uma mulher detida na Divisão Palestina da Inteligência Militar em Damasco, uma das prisões de Mukhabarat mais temidas na Síria, disse à BBC o que aconteceu com uma colega presa.

-- Eles inseriram um rato em sua vagina. Ela estava gritando. Depois vimos sangue no chão. Ele disse a ela: “Está bom assim para você?” Eles estavam caçoando dela. Era óbvio que ela estava em agonia. Nós podíamos vê-la. Depois disso ela não se mexeu mais.

A ameaça do general Nabib não fora vazia, à medida que o estupro foi sistematicamente usado pelo regime de al-Assad desde os primeiros dias do levantes. De acordo com Farha Barazi, um ativista dos direitos humanos baseado na Virgínia, muitos estupros resultaram em gravidezes não desejadas, com ginecologistas sírios vendo vítimas tão jovens quanto onze anos de idade. Em abril de 2012, Barazi recontou para estes autores a história de “Salma”, uma garota jovem de Baba Amr, Homs, cuja casa foi atacada pelos ‘shabiha’, gangues mercenárias leais a al-Assad.

-- Ela disse a eles: “Por favor, por favor, vocês não têm irmãs? Não tem mães? Apenas me deixem, por favor não na frente do meu pai”.

Os ‘shabiha’ amarraram o pai de Salma a uma cadeira na sua própria casa e o forçaram a ver enquanto três ou quatro homens estupravam a sua filha. [...]

Aproximadamente 200.000 pessoas foram mortas na Síria e outras 150.000 ainda estão detidas em prisões do regime, de acordo com “Caesar”, codinome usado por um fotógrafo da polícia militar síria que desertou e contrabandeou para fora do país em torno de cinquenta mil fotografias descrevendo atrocidades terríveis contra os detentos.

-- O que está acontecendo na Síria é um massacre genocida que está sendo liderado pelo pior de todos os terroristas, Bashar al-Assad – testemunhou Caesar diante do Congresso norte-americano em julho de 2014”.

WEISS, Michel; HASSAN, Hassan. Estado islâmico: desvendando o exército do terror. São Paulo: Seoman, 2015, p. 127-128.

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Um documentário da VICE retrata a cidade síria de Raqqa invadida/ocupada pelo Estado Islâmico [https://goo.gl/G6CE2s]. Nesta, eles tentam manter o cotidiano funcionando normalmente dentro do possível: cobrando impostos, fiscalizando o comércio, fazendo segurança, operando a máquina judiciária-penal com a sharia; e as pessoas estão vivendo sua vida, algumas até demonstrando entusiasmo pelo IE estar governando, outras agindo como se nada tivesse acontecido, apesar de a guerra estar ali em suas portas e tetos. Daí pensei: (a) ou elas estão profundamente coagidas diante às câmeras embora não ficasse nítido ou (b) o sujeito que as governava não tinha nada de diferente ou melhor para lhes oferecer. O caso é complexo.

Dias atrás circulava na rede uma reportagem mostrando o sofrimento de mulheres curdas e xiitas nas mãos dos caras do Estado Islâmico, tornadas escravas sexuais de jihadistas. É bom frisar que o maior “inimigo próximo” do EI (leia-se Bashar al-Assad) também não fica atrás no ramo de atrocidades, mesmo sendo (ou por conta de ser) o poder constituído na Síria, ainda legítimo segundo a ONU.

E toda vez que aparecer um discurso defendendo o regime al-assadista ou defendendo a proteção e o apoio que a Rússia têm dado ao ditador sírio contra os mais de 70 grupos opositores (entre eles o Estado Islâmico mas também as guerrilheiras de Rojava http://goo.gl/WQ12Ad), lembre-se que este discurso só estará defendendo um terrorismo de tipo diferente. E a metralhadora russa é bastante democrática.


Por fim, ando pensando que o que torna o Estado Islâmico tão chocante a todo o mundo ocidental (inclusive a mim) não é bem o terrorismo em si, mas a falta de zelo em esconder as barbaridades que se comete ou delas se orgulhar como se fosse propaganda de seus ideais (e de fato é – daí a atração de inúmeros jovens que estão atravessando o mapa mundi para integrar as fileiras do EI). O horror vem acompanhado de uma cinegrafia à moda tarantinesca, só que em árabe.  

Comentários

Postagens mais visitadas