Luta de classes nas praias cariocas: dinheiro para segregar e a desinvenção do racismo
A luta de classes entre pitboys e pessoas pobres, no último fim de semana em Copacabana, fez circular na rede o vídeo de uma reportagem de 1990, feita pela extinta TV Manchete, sobre o encontro de pobres e “ricos” (leia-se: classe média com síndrome de aristocracia) num ambiente de igualdade formal: a praia. Esse vídeo ajuda a pensar dois pontos da atualidade. Clique aqui para ver.
1. Ele mostra o racismo antes de a esquerda
inventá-lo. Não é raro lerem por aí que racismo e discriminação a
pobres, bem como machismo e homofobia, não passam de invenções da
esquerda depois que o partido de estrela vermelha (que hoje de vermelho
só tem mesmo a estrela e a vergonha) chegou à presidência. Esse
enunciado não está de todo errado. Afinal a linguagem não apenas
descreve as coisas do mundo, mas também e principalmente torna tais
coisas visíveis. Sem linguagem o mundo é inenarrável. Como falar sobre
algo que se sente e se vê caso não existam palavras para isso? Talvez
por isso, depois da invenção, o vídeo cause mais discussão do que na
época. Talvez porque hoje possamos “ver”.
No vídeo uma jovem diz
que passou a frequentar a praia da Barra porque lá na zona sul tem
chegado muitos ônibus lotados de pessoas horríveis (leia-se: pretos e
pobres), sem um pingo de educação e civilidade, que dizem grosserias e
comem farofa com galinha. E mais. Tem nojo de olhar para aquelas pessoas
e saber que são do mesmo país que o seu. “Eles”, porém, não seriam
brasileiros, mas uma sub-raça [Hitler curtiu].
Qual seria então a solução? Investir na educação pública de modo que
esta dê oportunidades iguais para todos? Fazer com que filhos de ricos e
pobres frequentem as mesmas escolas e aprendam as mesmas regras de
convívio e comportamento? Reduzir a desigualdade social geradora do
estranhamento entre pessoas do mesmo país? Terminar com a segregação que
começa quando pobres têm “bairros especiais” para morarem? Nada disso. A
solução para a moça é “cobrar a entrada”. Isso mesmo. Radicalizar a
segregação, impedindo o acesso aos pobres. Em outras palavras,
PRIVATIZAR um lugar público. E é aqui que começa o segundo e último
ponto interessante para pensar a atualidade.
2. Sabe aquele
enunciado segundo o qual a esquerda inventou o racismo e a demofobia
inexistentes no Brasil? Pois então. Ele anda juntinho com um outro aí
que tem na privatização a solução para boa parte dos problemas do país. O
principal alvo do desejo privatizador são as universidades. Esse antro
onde trabalha e estuda aquela mesma esquerda que inventou o racismo no
Brasil. Caso privatizadas, adivinhem só o que iria acontecer! Olha,
mesmo sendo públicas as federais, até hoje poucos são os pretos e pobres
em cursos de elite.
Segregação. É simples. É o “dinheiro” como
fator supremo de distinção, como régua entre “vencedores e fracassados”,
que nem costumam dizer os meritocratas (que de mérito não têm nada). A
volta da tese privatizadora parece reação contra o aumento da frequência
de pobres e pretos nas universidades. “Não tenho nada contra pobres,
mas...” É o que diz outro entrevistado do vídeo lá. Ouço muito isso. A
negativa freudiana ajuda a entender. Já que seu sucrilhos não fala, seu
“mas” fala e muito.
E se todas as escolas fossem privatizadas?
Todo mundo teria iguais oportunidades, né?! Só que não. É óbvio que
aquelas com mais qualidade e recursos, com maior taxa de aprovação em
vestibulares seriam caras o suficiente para filho de pobre só entrar se
for trabalhar na cantina. Condições iguais de concorrência: necas! Antes
das cotas sociais e raciais, podem contar quantos filhos de pobres
oriundos de escolas públicas de bairro entraram em cursos de medicina da
UFU ou da UFG (para não falar de federais do eixo). Usa-se alguns argumentos contra as cotas como diminuição
da qualidade do ensino superior (duvidoso), invenção do racismo,
populismo, paliativo que não resolve a questão (concordo), mas quando
ancorado no desejo privatizador a raiz do argumento é umazinha só: “Não
invadam nossa praia!”. Ontem a desculpa era o comportamento inadequado,
hoje são os arrastões.
Sempre o mesmo fundo. Como resolver?
“Através do dinheiro”. Pelo menos o discurso é coerente com sua
história. Direita e esquerda nascem durante a Revolução Francesa. São
posições do liberalismo político. Não tem nada de socialismo nessa
bagaça. É capitalismo mesmo: mais ou menos pior. Uma das defesas da
direita, partidária inicialmente da monarquia constitucional, era o voto
censitário. Só vota quem tem uma quantia razoável de dinheiro! O resto
capina.
Tudo isso está nos livros de história. É só ler. Não
resolve nada, é verdade, mas ajuda, viu?! Sobretudo se você confrontar
com o mundo fora dos livros e tentar pensar só um pouquinho o planeta
girando fora do eixo de seu umbigo.
À moça do vídeo, por
exemplo, os livros ajudaram. Hoje com quase cinquenta anos ela não se
arrepende do que disse mas pensa de modo completamente diferente. Clique aqui para ler.
Infelizmente essa possibilidade de ver o mundo com outros olhos começa a
diminuir. Hoje tramita no legislativo um projeto de lei que visa
extinguir as discussões políticas nas salas de aula. É certo que temos
muitos problemas e eles são bem complexos para serem resolvidos da noite para o dia ou com medidas prontas implantadas simplesmente porque deram certo em países diferentes do nosso. Contudo essa lei claramente só
atrapalharia discutir estes problemas. Quem pede silêncio quer que
as coisas permaneçam como estão ou, pior, regridam. Quer talvez voltar
ao tempo em que o racismo ainda não tinha sido inventado.
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