Agamben: sem classes
Se tivéssemos de pensar, mais uma vez, os destinos da humanidade em
termos de classe, então deveríamos dizer que, hoje, não há mais classes sociais,
mas apenas uma pequena burguesia planetária, na qual as velhas classes se
dissolveram: a pequena burguesia herdou o mundo; ela é a forma na qual a
humanidade sobreviveu ao niilismo.
Mas isso era exatamente o que tanto o fascismo quanto o nazismo tinham
compreendido, e ter visto com clareza o irrevogável ocaso dos velhos sujeitos
sociais constitui, antes, a sua insuperável patente de modernidade. (De um
ponto de vista estritamente político, fascismo e nazismo não foram superados e
nós vivemos ainda sob o signo deles). Eles representavam, porém, uma pequena
burguesia nacional, ainda presa a uma postiça identidade popular, sobre a qual
agiam sonhos de grandeza burguesa. A pequena burguesia planetária, ao
contrário, se emancipou desses sonhos e fez sua a atitude do proletário de
declinar qualquer identidade social reconhecível. O pequeno burguês nadifica
tudo o que é no próprio gesto com que parece aderir a isso: ele só conhece o
impróprio e o inautêntico e recusa até mesmo a ideia de uma palavra própria. As
diferenças de língua, de dialeto, a própria particularidade física de cada um,
que constituíam a verdade e a mentira dos povos e das gerações que se sucederam
na terra, tudo isso perdeu para ele qualquer significado e qualquer capacidade
de expressão e de comunicação. Na pequena burguesia, as diversidades que
marcaram a tragicomédia da história universal estão expostas e reunidas em uma
fantasmagórica vacuidade.
Mas a insensatez da existência individual, que ela herdou dos subsolos
do niilismo, se tornou, nesse ínterim, tão insensata que perdeu todo páthos e
se transformou, ao se mostrar abertamente, em exibição quotidiana: nada se
assemelha tanto a vida da nova humanidade quanto um filme publicitário do qual
se apagou qualquer traço do produto anunciado. A contradição do pequeno
burguês, porém, é que ele ainda procura nesse filme o produto do qual foi
privado fraudulosamente, obstinando-se apesar de tudo, a tornar própria uma
identidade que se lhe tornou na realidade, absolutamente imprópria e
insignificante. Vergonha e arrogância, conformismo ou marginalidade permanecem
assim os extremos polares de toda a sua tonalidade emotiva.
O fato é que a insensatez de sua existência se depara com uma última
insensatez, sob a qual naufraga toda publicidade: a morte. Nesta, o pequeno
burguês se confronta com a última expropriação, com a última frustração da
individualidade: a vida nua, o puro incomunicável, onde a sua vergonha encontra
finalmente a paz. Desse modo, ele encobre, com a morte, o segredo que deve, no
entanto, se resignar a confessar: que também a vida nua lhe é, na verdade,
imprópria e puramente exterior; que não há para ele, sobre a terra, nenhum
abrigo.
Isso significa que a pequena burguesia planetária é verossimilmente a
forma na qual a humanidade está se confrontando com a sua própria destruição. Mas
isso significa, também, que ela representa uma ocasião inaudita na história da
humanidade, que esta não deve, sob hipótese nenhuma, deixar escapar. Pois, se
os homens, em vez de procurarem ainda uma identidade própria na forma imprópria
e insensata da individualidade, conseguissem aderir a essa impropriedade como
tal, fazer do próprio ser-assim não uma identidade e uma propriedade
individual, mas uma singularidade sem identidade, uma singularidade comum e
absolutamente exposta – isto é, se os homens pudessem não ser-assim, nesta ou
naquela identidade biográfica particular, mas ser o assim, a sua exterioridade
singular e o seu rosto, então a humanidade teria acesso pela primeira vez a uma
comunicação que não conheceria mais o incomunicável.
Selecionar na nova humanidade planetária aqueles caracteres que permitam
a sobrevivência, remover o diafragma sutil que separa a má publicidade
midiática da perfeita exterioridade que comunica apenas a si mesma – esta é a
tarefa política da nossa geração.
AGAMBEN, Giorgio. Sem classes. In: A
comunidade que vem [1990]. Tradução e notas Cláudio Oliveira. Belo
Horizonte: Autêntica, 2013, p. 59-62.
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