"Dostoiévski, a escrita do sofrimento e do perdão", diz Julia Kristeva

O Cristo Morto, Hans Holbein (1521)

Foi a intimidade com o afeto que conduziu Dostoiévski a visão segundo a qual a humanidade do homem reside menos na busca de um prazer ou de um benefício do que na aspiração a um sofrimento voluptuoso. Diferente da animosidade ou da raiva, menos objetal, mais curvado sobre a própria pessoa, aquém desse sofrimento, só haveria perda de si na noite do corpo. É uma pulsão de morte inibida, um sadismo entravado pela vigília da consciência e retornado sobre o ego, doravante doloroso e inativo. “Às vezes, o homem se põe a amar apaixonadamente o sofrimento: é um fato”. Muito dostoievskiana, a definição do sofrimento como liberdade afirmada, como caprilho: “O sofrimento! mas é a única causa da consciência”. O transgressor, esse ‘super-homem’ dostoievkiano que se procura, por exemplo, através da apologia do crime em Raskolnikov, não é um niilista, mas um homem de valores. A prova é o sofrimento, que resulta de uma permanente procura de sentido. Aquele que tem consciência de seu ato transgressor, por isto mesmo é punido, pois sofre: “reconhecendo seu erro. É o seu castigo, independentemente do banimento”; “o sofrimento, a dor são inseparáveis de uma grande inteligência, de um grande coração. Parece-me que os verdadeiros grandes homens devem sentir uma imensa tristeza na Terra”. 

No cristão Dostoiévski, o sofrimento – indício maior de humanidade – é a marca da dependência do homem frente a uma Lei divina, tanto quanto de sua diferença irremediável com relação a essa Lei. A simultaneidade do laço e da falta e a da fidelidade e da transgressão encontram-se na própria ordem ética, em que o homem dostoievskiano é idiota por santidade, revelador por criminalidade.

Todavia, se rompêssemos o elo simbólico, nosso Jó tornar-se-ia Kirilov, um terrorista suicida. O narcisismo do deprimido transforma-se na mania do terrorismo ateu: Kirilov é o homem sem Deus que tomou o lugar de Deus. O sofrimento cessa para que a morte se afirme. 

Em Doistoiévski, o niilismo suscita a revolta do crente contra o aniquilamento transcendental. O psicanalista detectará a fascinação, pelo menos ambígua, do escritor tanto por certas defesas maníacas instaladas contra esse sofrimento como pela depressão incomum que ele cultiva, por outro lado, como revestimentos necessários e antinômicos de sua escrita. O abandono da moral, a perda do sentido da vida, o terrorismo ou a tortura, tão freqüentes em nossa atualidade, não deixam de nos lembrar que essas muralhas são abjetas. Quanto ao escritor, ele escolheu a adesão à ortodoxia religiosa. Esse ‘obscurantismo’, tão violentamente denunciado por Freud, finalmente é menos nefasto para a civilização do que o niilismo terrorista. Resta, com e para além da ideologia, a escrita: combate doloroso e permanente para compor uma obra de ponta a ponta com as volúpias não-nomeáveis da destruição e do caos. 

A religião ou então a mania, filha da paranóia, são os únicos contrapesos para o desespero? A criação artística integra-se e as dispensa. Assim, as obras de arte nos conduzem a estabelecer relações menos destruidoras, mais pacificadoras, conosco e com os outros. 

KRISTEVA, Julia. Sol negro: depressão e melancolia. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1989, p. 166; 170; 171, adaptado.

Comentários

  1. TERAPIA DO PERDÃO: UMA PROPOSTA DE PAZ
    Perdoar é um caminho que se trilha, uma jornada que, embora possa beneficiar o próximo, proporciona o crescimento para aquele que perdoa. Pode ter início através de um acordo que fazemos com nós mesmos, pela opção de transformar todas as experiências, mesmo as mais dolorosas, em fontes de crescimento.
    Quando é possível ser exercitado com aquele que nos feriu, ou nos fez sentir dessa forma, ainda melhor, porquanto promove o diálogo e a possibilidade de crescimento mútuo. Quando isso não seja possível, mesmo assim promove o bem estar, ao proporcionar a libertação da raiva e do rancor acumulados, que se transformam em verdadeiros venenos emocionais para quem os conduz, levando não raro a doenças psicossomáticas. Fora isso, permite descobrir nossos pontos vulneráveis e aprimorá-los.
    Muitos confundem o perdão com a negação das emoções, mas para perdoar não é necessário negá-las, mas entende-las e elaborá-las de uma forma mais profunda, respeitando o tempo em que permaneçam conosco, mas sem valorizá-las demasiadamente.
    Ponto importante é poder diferenciar o indivíduo das suas atitudes; o que está em questão não é julgar o outro, mas perceber o quanto sua atitude pode ter nos magoado. Também não significa concordar com comportamentos equivocados, mas promover o reconhecimento da humanidade do outro, que passa pelo reconhecimento da nossa própria humanidade: assim como erramos e possuímos sombra, isso ocorre também com o outro.Quando começamos a não desejar o mal do outro, já damos um passo importante para perdoá-lo. Não será necessário que a amizade ou a convivência retornem ao mesmo patamar, mas caso isso ocorra ainda melhor, porquanto demonstra que o conteúdo emocional foi bem trabalhado. O registro dos fatos pode até permanecer na memória, mas a diferença é que não trará mais o conteúdo emocional perturbador, que nos faz ressentir o já vivido, retornando ao passado.
    Por esses e outros motivos, a terapia do perdão transforma-se em fonte de paz para o indivíduo, libertando-o do medo de amar, um dos grandes algozes da humanidade.

    Iris Sinoti - Terapeuta Junguiana
    Jornal de Estudos Psicológicos nº 47 | Julho e Agosto |


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