Testemunha das Palavras

Naquele dia acordara bem cedinho. Hábito incomum já que se tratava de um feriado nacional e não havia nenhum compromisso em sua agenda. Tomou o café às pressas como alguém que não tinha costume de realizar tal refeição àquela hora. Vestiu uma calça tergal e uma camisa formal dessas cheia de botões. Calçou sapatos de couro que combinavam com a cor de seu cinto e, por último, pôs uma gravata daquelas que o nó já vem pronto desde a loja (e toma-se o cuidado para nunca desfazê-lo). Penteou o cabelo metodicamente. Estava quase pronto quando lembrou que já ia esquecendo algo indispensável: o livro. Era um livro de grandes proporções que, embora tivesse uma capa extremamente simples, possuía sem dúvidas mais de quatrocentas páginas grafadas com letras miúdas. Certamente devia ser um livro muito importante e estimado, pois não saía de cima do criado-mudo que ficava ao lado de sua cama. Às vezes, lá pelas tantas da noite, ele colocava o livro no colo e relia alguma passagem para logo depois ficar meditando sobre a mesma. Havia inclusive uma reunião semanal com pessoas de seu apreço para estudarem o tal livro. E nestas ocasiões não era raro surgirem controvérsias interpretativas a respeito de diversos trechos e de suas traduções. Prontamente ele colocou o referido livro embaixo do braço e saiu apressado. Seu olhar compenetrado não deixava dúvidas. Naquele dia ele tinha uma missão.

Atravessando a pé mais de oito quadras, ele se dirigia para um endereço que nunca havia ido antes, mas que parecia ter sido gravado na cabeça assim como algumas frases do livro que carregava. Encontrou pouquíssimas pessoas pelo caminho, porque, afinal de contas, além de feriado, era realmente muito cedo. Enfim, após ziguezaguear algumas ruas abaixo, parou em frente a uma casa com portões gradeados de cor cinza. O carro parado na garagem e as roupas no varal da área, entre a casa e o portão, denunciavam que os moradores estavam ali. Havia alguns panfletos (ou seriam livretos?) jogados no chão da área, possivelmente espalhados pela ventania que precedeu a chuva da noite anterior. Neles, além do título “Sentinela”, podia-se ver belas imagens preenchidas por cores vivas, paisagens e pessoas, algumas usando trajes que remetiam a outra época. Pronto! Ele tinha agora certeza de que estava no lugar certo. Logo, começou a tocar a campainha com sofreguidão. Digo “começou” porque este exercício era intercalado com palmas e mais palmas, e com gritos de “ô de casa!”, “tem alguém aí?”. Depois de alguns minutos de nítida perturbação do sossego naquele lugar pacato, uma mulher descabelada, e com cara de poucos amigos, abre a porta para saber o que lhe tirara de seu sono tumular. Seu marido, igualmente desalinhado e surpreso pela balbúrdia àquela hora, vem logo atrás e fica a espreita. Ambos não conseguem identificar o sujeito, mas, com efeito, ele veste um traje bastante familiar. Eis que a mulher atravessa a área e vai atender a visita inesperada, enquanto o marido fica no portal e observa com cautela o desenrolar do evento.

- Bom dia! Talvez você não se lembre do meu rosto, mas eu participo de uma instituição sem fins lucrativos e estou fazendo um trabalho. 

Totalmente aturdida, a mulher fica muda e tenta entender aquilo. Até que o rapaz torna visível a capa do livro que portava, nela podia-se ler “As palavras e as coisas”. Imediatamente ele abre numa página na qual está escrito “A prosa do mundo” e, olhando com ar de extrema satisfação para a mulher, indaga:

- A senhora conhece Michel Foucault?

Não era uma missão. Era vingança.

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Publicado em 26 mar. 2014
Post original: https://www.facebook.com/emilehenryy/posts/438120606322935

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